Espaço Restrito

Para pequenas crônicas, contos e livros online. Histórias que invento para passar o tempo ou para congelá-lo de vez na memória. Divirta-se!

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sábado, 8 de novembro de 2008

A herança da Dona Esperança(06/04/2006, RJ)



Acordei assustado, sem saber o que estava acontecendo. Ouvia pessoas correndo, gritos. Joguei-me dentro de um calção e fui para a rua. A manhã era cinzenta e a chuva caía miúda sobre minhas costas nuas. Era um dia daqueles onde a gente tenta não sair de casa, fazer nada. Gostamos de escancarar as janelas em dias bonitos, talvez para mascarar as mazelas da cidade. Nada como um bom dia de sol como curativo sobre as seqüelas da vida em nossa sociedade.

Acompanhei o fluxo das pernas, indo na mesma direção. Na contramão, apenas uma menininha, alheia a tudo, a lambuzar-se deliciosamente com um sorvete de casquinha. Eu não sabia para aonde,mas continuava indo. Ela - a menina- passou por mim, rindo.


A princípio, pensei ser por causa dos coelhos estampados no meu short. Não dei importância na hora. A chuva ficou mais forte e eu, admito, estava aflito para saber qual era a questão de vida ou morte com o condão de fazer alguém correr para fora da cama num domingo encoberto. Fui chegando perto. Olhei para trás e vi novamente a menina, parada, olhando para mim. Usava um vestido florido, com uma faixa rosa de cetim. Quase fui atropelado por uma dona magrinha, com a cabeça cheia de rolinhos. Pulei de lado. Bobo seria eu se não saísse do caminho. A figura fininha esganiçava a voz, maltratava a garganta, repetindo, como um mantra:


-É meu! É meu!


O ouvido doeu. Uma moça vestida de noiva saiu correndo da igreja. Atravessou a rua e quase foi colhida pelo caminhão de cerveja. O que falta acontecer agora? Saído em disparada da sinagoga, e um judeu baixinho tem seu caminho cruzado pela nubente, e acaba pisando-lhe o véu. Ela reage rapidamente e, com um tabefe potente, derruba-lhe, e o solidéu. Mas não há briga. A rapariga pula o nanico esparramado, que é ajudado por uma amiga a se levantar. E recomeçam a andar rapidamente. Passam a minha frente; eu retardado pelo desconhecimento, freado pela curiosidade sem ganância. Apenas a ânsia de saber por que todos iam na mesma direção. Algo bate na minha nuca. Não me machuca, mas irrita. Procuro pelo chão e encontro uma bolinha de papel com manchas em uma cor esquisita. Já vi aquele guardanapo antes. Mas, onde? Continuo. Estou com frio, molhado. No meio da muvuca, uma chuva de papel picado.


Ou não. O bêbado olha pra cima e grita:

-É dinheiro, mermão! - e estica a mão. Mas não larga a pinga, que respinga pra todo o lado.


Sacudido no mar de gente, estou perdido, decepcionado, mareado. Vejo um homem de gravata a gritar bravatas enquanto atira notas ao povo. Do alto de suas botas com biqueiras de prata, dizia ser a herança da Dona Esperança.

Pelo que eu sabia ela foi a ultima da família, não teve filhos ou filhas. Parece que morreu do coração. Antes foram as irmãs Saúde e Educação. Acabaram-se falidas, sem um tostão. De onde vinha então aquele quinhão?


Percebi, de repente: O sujeito estava ali a comprar gente, como em um mercado. Fui ficando afastado, deixando a multidão expelir-me. Sentei no meio-fio, envergonhado com a minha condição de ser humano. Minutos depois, parecia que passara um ano, tamanha a minha distância da situação. Senti no ombro o toque de uma pequena mão.


-Quer sorvete? - disse a voz amena. Reconheci a menina, aquela que me observara da esquina, a salvo da multidão.


-Não, obrigado. - respondi, intrigado.


-Você está perdida? - perguntei.


-Talvez não, talvez sim. – ela respondeu.


-Como assim? – mais confuso estava eu.


-Posso ter me perdido - retrucou a garotinha. A cada segundo eu tinha menos noção do acontecido.


-Seus pais estão onde? - perguntei, imaginando-os no meio do povo enlouquecido.


-Por aí, pelo mundo. – disse. Pude ver no seu olhar, bem no fundo, um misto de tristeza e agonia.


Não sabia se algo havia a fazer. Levá-la à delegacia? Não. Lá, como em qualquer outro lugar, ninguém havia.


-Vamos para a minha casa. Quando tudo acalmar, procuro sua família. Devem estar desesperados por perderem a filha. – era, por fim, a única opção, por mais impróprio que parecesse para mim na ocasião.


-Você não vai com os outros, pegar dinheiro?- Admirou-se, desconfiada.


-Que nada! Quando vi a correria, pensei ter ocorrido um acidente. Sei lá, poderia ter alguém precisando de socorro. Vi gente por todos os lados e, por um instante, achei até bom tanta solidariedade. Mas não era verdade, era com a riqueza que aqueles olhares fixos estavam preocupados. – respondi, desalentado.


- É, parece que somos a exceção. – ela sussurrou e esticou a mão, oferecendo-me um papel amassado. Parecia o mesmo guardanapo com o qual havia me acertado.


Desamassei. Era uma cartinha: Dizia estar feliz, pois tinha se encontrado. Esteve a vida inteira do meu lado, mas havia se perdido de mim. Era minha filha sim, como filha de tantos outros. Das pessoas do mundo inteiro, sendo renegada por dinheiro em muitas oportunidades, em outros países, outras esquinas, outras cidades. Achavam que tinha morrido há um ano, um dia, uma semana. Já virara uma lenda urbana o acontecimento do seu falecimento. Era mais velha do que aparentava, mas isso não importava, pois era sempre a mesma criança desde o começo de suas andanças pela Terra. Viu catástrofes, viu guerras, viu tristeza. Mas viu a beleza do olhar, sorrindo ao surgir do sol em um novo dia, seja numa seca ou após uma tsunami, porque ainda existe quem ame o simples fato de estar vivo. E sonhe, por mais que a realidade pareça colocar sobre os olhos uma venda. Quem sempre aprenda e conheça seu valor, não venda seus sonhos ou subverta seu conhecimento, loteie seus sentimentos ou cerceie sua alma.


Sinto então uma calma, um silêncio. Em minhas mãos, o guardanapo parece mais um pergaminho. Noto, pelo caminho, as ruas vazias. Não vejo mais a menina. Volto para a esquina: Ninguém. Noto a ausência de pingos no papel. Limpo como há muito não via, o céu. Parou de chover e o sol reina sozinho. Olho novamente para o pergaminho. No final, uma frase escrita com letra de criança: ‘Nunca mais estarás sozinho. Assinado: Esperança’. Não sei bem mas, se não chorei, foi por um triz. Lembro apenas de ter acordado feliz.

sábado, 25 de outubro de 2008

Cenários Urbanos - Cena 2

O som da sirene abre caminho entre os curiosos. Abro os olhos, sinto o corpo dolorido. Meus ossos reclamam por dormir no banco dianteiro do carro. Olho o relógio: quase cinco da manhã. A Lapa ainda está uma ferveção. Naturalmente já é assim. Quando o sol se põe, as mais variadas tribos ganham às ruas, bares, casas de show e outros lugares mais, digamos, reservados. A fauna do local é sempre variada. As ocorrências também. Assaltos, agressões e, não raro, assassinatos.

Estou no carro desde as três. Do outro lado da rua, um homem, em um terno de linho bege, deitado de bruços na rua ao lado da Sala Cecília Meirelles, torna as coisas ainda mais agitadas. Saio do carro e dou uma esticada nas costas. Olho para os arcos. Não posso deixar de admirar o seu efeito naquela paisagem. É a sobriedade cruzando o caos. Atravesso a rua e abro caminho entre as pessoas, com meu distintivo na mão. Chego até o paramédico e pergunto o porquê da demora:


-A madrugada está movimentada. – foi a resposta.

 

Disso eu sabia. Ouvira no rádio alguns chamados, desde que eu mesmo fizera a chamada para o caso em questão. Mas não estava preocupado, o homem na calçada podia esperar. Não havia nada mais que pudesse ser feito por ele, além de um enterro decente.

 

Segundo testemunhas, ele havia saído do restaurante da esquina. O terno de linho bege e o chapéu Panamá denotavam alguém de posses. Aparentemente, bebera bastante. Trôpego, andou até em frente à Sala Cecília Meirelles e sentou na entrada, apagando por ali mesmo.

Fui até o restaurante. Era um ambiente muito escuro e enfumaçado. Procurei o barman, meu conhecido há muitos anos, homem de confiança. Não precisava me preocupar com a fidelidade do seu testemunho, mesmo porque, ao contrário do resto daquele mundo, era abstêmio. Disse-me que o homem chegara por volta das dez horas. Estava sozinho, e usava um chapéu Panamá, que cobria parte do seu rosto. Sentou-se no balcão e consumiu três doses de scotch e três de vodka com refrigerante. Pedi para ver a nota de serviço para comprovar. A esta altura eu tinha a companhia de um colega da delegacia do centro, que acompanhava atentamente os depoimentos, tomando nota de tudo. O barman continuou:

 

-O cara pagou em dinheiro. Aliás, tinha um maço de notas de cem no bolso.

 

E disse mais: Além de bem vestido e com dinheiro no bolso o homem tinha, no pulso, um relógio Rolex e uma pulseira de ouro. A camisa aberta deixava à mostra um espesso cordão, também de ouro. Como era de se esperar, nada disso foi encontrado com o corpo. A questão era saber se ele tinha sido saqueado antes ou depois de morrer, e a causa da morte. Podia ter sido assassinado, ou simplesmente ter passado mal. Eu precisava de mais informações, esgotar as possibilidades.

 

Despedi-me do barman e saímos do restaurante. Um homem moreno, alto e de cavanhaque veio em nossa direção. Contou que ele e outras pessoas que estavam em frente à banca de jornal viram quando um jovem aproximou-se da vítima. Tinha uma lata de refrigerante na mão e falava alto:

 

-Rapaz, eu já falei pra você não beber! Você não pode! Olha aí, agora fica desse jeito! Vou te fazer um favor, mas só desta vez: levarei o chapéu, os documentos e as jóias para sua esposa. Se ficar aí, com tudo isso, acabará sendo assaltado. Quando acordar, vai me agradecer.

 

O bêbado abriu os olhos e murmurou algo ininteligível, esticando a mão em direção à lata de refrigerante.

 

-Toma, pode ficar. - disse o “amigo”, entregando-lhe a lata.

 

O “amigo” levou embora os pertences do bêbado, inclusive o chapéu, passando em frente à banca de jornal. Sorriu para as pessoas e comentou:

 

-Ele sempre faz isso. Nunca muda.

 

Agradeci o depoimento. Entreguei-lhe um cartão, pedi para meu parceiro de ocasião tomar nota dos seus dados e fui até o local onde estava o corpo. Segundo o Paramédico, parecia que o homem tinha sido vítima de um enfarte fulminante, mas só o legista poderia confirmar.

 

Bem, era isso. Até então, segundo os fatos, tínhamos um cara que bebeu demais, apagou na calçada e foi roubado. Quando acordou, andou até a rua lateral e teve um ataque cardíaco, morrendo em seguida. Simples assim, um homem de pouca sorte.

 

Para mim estava ótimo. Quem quer complicação? Isso não é um filme. A resposta mais simples, geralmente, é a verdadeira.

 

Dois dias depois, recebo o relatório do legista e a minha tranqüilidade vai para o espaço. Segundo o laudo, o homem, ainda não identificado, havia sido envenenado. A substância encontrada causou o enfarte. Por sorte, minha posição privilegiada permitira que eu guardasse a lata de refrigerante como evidência. Mas fiquei realmente chateado. Estava tudo tão simples e agora eu tinha que encontrar um assassino. E o candidato perfeito era o dono das digitais na latinha. Mandei-a para o laboratório.

 

As digitais estavam no sistema. Era um punguista de quinta categoria, que agia há anos no centro do Rio. Desde a adolescência colecionava entradas em instituições correcionais. Mas não tinha nenhum assassinato. “Bom, sempre tinha uma primeira vez”, pensei.

 

Organizei uma campana. Pra quem não sabe, trata-se de ficar, horas a fio, vigiando um local até se apresentar a oportunidade de prendemos o suspeito. “A casa caiu”1 em uma quitinete em Copacabana. O delinqüente ainda tinha em seu poder as jóias da vítima, mas nem sinal dos documentos ou do dinheiro. Na delegacia, foi prontamente reconhecido pelas testemunhas. Agora, era só aguardar a identificação do corpo e fim de caso. Como não havia sido registrado nenhum desaparecido com suas característica, o corpo podia acabar sendo enterrado como indigente.

 

Já era mais de uma da manhã quando fui para casa, finalmente. Servi-me um uísque nacional e joguei-me no sofá. Estava quase dormindo, quando o celular tocou. Era uma das testemunhas. Lembrara de algo e queria me falar. Marquei no cais do porto, por segurança.

 

O local estava deserto, como era de se esperar. Encaminhei-me na direção dos faróis do carro parado à minha frente, com a mão na pistola, dentro do bolso da jaqueta. Reconheci o homem de cavanhaque.

 

-Algum problema, senhor?

 

Ele respondeu:

 

-Desculpe tirá-lo de casa a essa hora, inspetor. Mas acho que é importante.

 

-O que foi?

 

-Eu estava em casa, depois do reconhecimento do suspeito... E me ocorreu uma coisa.

 

-Você lembrou de algo que não havia me contado?

 

-Lembrei.

 

-Então diga, homem!

 

-Acho que não foi o suspeito que envenenou o homem.

 

-Como assim, por quê?

 

-Ele estava bebendo o refrigerante antes de dá-lo ao bêbado. Se estivesse envenenado, ele teria morrido também.

 

“Diabos!”, pensei. Ele está certo. Isso pode dar base para uma nova investigação.

 

-Alguém mais sabe disso?

 

-Não. Vim direto falar com o senhor, como pediu. Não queria correr nenhum risco.

 

-Ótimo. Você fez bem.

 

Dito isso, cumprimentei-o, pressionando quatro vezes o gatilho da pistola. Sorte ter lembrado de colocar o silenciador. Foi tudo muito rápido. O coitado nem soube o que o atingiu. Fui até ele e disparei mais uma vez, na cabeça, para conferir. Olhei em volta. Recolhi seus pertences, joguei seu celular na baía e voltei para o meu carro.

 

Tudo resolvido, o suspeito está preso. Infelizmente, uma das testemunhas foi vítima fatal em um assalto, mas existem outras com depoimentos mais “adequados” para o caso. Eu já ia esquecendo de mencionar o mais importante de tudo: um certo agente da corregedoria não vai mais poder falar nada para ninguém a respeito do meu pequeno comércio de substâncias ilegais. Meu sócio merece os parabéns, é realmente de confiança. Avisou-me prontamente, há cerca de uma semana, quando o homem de chapéu Panamá sentou-se no balcão pedindo drinques e informações a respeito de onde comprar “aditivo”.

 

Queria detalhes. Saber se era seguro, se havia algum policial dando cobertura e tal. Perdido em meus pensamentos, tirei do bolso a carteira, com o distintivo da Corregedoria. Péricles Ferdinand Ferreira, divorciado, 46 anos. Estava na polícia desde os 22.

 

Que idiota. Achar que podia sair por aí perguntando por tiras corruptos. Foi fácil segui-lo, imobilizá-lo e jogá-lo no porta-malas.

 

Levei-o para um galpão abandonado, na Zona Oeste, usado para “persuadir” alguns informantes. Embebedei-o, enquanto procurava saber o que ele sabia. Destruí suas anotações e, por fim, coloquei o veneno na última dose de vodka com refrigerante. Deixei-o só, por uns momentos. Um homem precisa de privacidade para morrer.

 

Pensei em sumir com o corpo, mas alguém podia encontrá-lo e as coisas ficariam mais complicadas. Então, já que desaparecer com o cadáver não era indicado, talvez o oposto funcionasse. Percebi que tínhamos o mesmo tipo físico. As únicas diferenças poderiam ser os fios de cabelo brancos - mas ele os disfarçava com tintura - e uns poucos centímetros a meu favor na altura. Deu trabalho achar uma roupa parecida com a dele e ficar duas horas fingindo-me de bêbado na calçada. Antes, havia ido ao restaurante, jogar conversa fora com o meu sócio.

 

Paguei pelas bebidas. Obviamente, não bebi aquilo tudo, apenas um pouco de vodka para ficar com o cheiro. Sem esquecer, é claro de derramar um pouco na camisa. Sabia que, com todas aquelas jóias, logo algum ladrãozinho da região ia aparecer. Mas, reconheço que o cara com o refrigerante foi um golpe de sorte. Como eu disse, minha “posição privilegiada” me permitiu guardar a lata.

 

 Estava escuro, e o imbecil nem percebeu que eu usava uma luva na mão direita. Só queria saber do relógio e do cordão. Procurou a carteira, mas essa eu tinha guardado. Depois, quando o local foi ficando vazio, cambaleei até a rua lateral, onde tinha deixado meu carro estacionado. Tirei o corpo do porta-malas, coloquei-o na calçada e fui embora. Dei a volta na quadra, troquei de roupa e voltei para a rua em frente. Encostei o carro, fiz a chamada para a central e dormi o sono dos justos, até que as sirenes me acordaram.

 

Quase tudo terminado. Só faltava dar um telefonema para um outro associado que estava “guardado” na casa de custódia para onde iam mandar o suspeito. Parece que o infeliz ia sofrer um acidente antes do julgamento. Pois é, coisas da vida. Gente sem sorte.

 

“A Casa Caiu”1: Gíria usada para dizer que a prisão foi feita. 

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Cenários Urbanos - Cena 1


 

Julia vem saindo da universidade quando é abordada por um jovem, que a agarra pelo braço e anuncia o assalto:

 

- Perdeu, gata. Quero relógio, celular e dinheiro, senão te furo – mostra um pedaço de vidro.

 

E complementa:

 

 - Ah, e tira esse cordãozinho aí, também.

 

A moça, sem ação, só consegue murmurar, já com os olhos marejados:

 

- O cordão não... Foi presente do meu pai, por favor, tem dinheiro aqui – abre a bolsa.

 

O pivete estava irredutível:

 

 - Não quero saber... Agora é meu. Tira!

 

Nisso, ouve-se o barulho da freada de um ônibus, um falatório, o som da porta abrindo. O motorista desce, gritando:

 

- Solta a moça, ô vagabundo!

 

O ladrão pára, vê o motorista, muito mais velho do que ele. Podia reagir, mas, não faz nada. Olha fixamente para o velho. Em um movimento rápido, passa o caco de vidro no braço de Julia e sai correndo, gritando:

 

- Isso é pra você lembrar de mim.

 

O motorista, com os olhos a transbordar de indignação, socorre a moça:

 

- Você está sangrando! Vamos para o hospital! – ele tremia, aflito.

 

Julia, por incrível que pudesse parecer, estava mais calma:

 

- Não foi nada, só um arranhão. Vou até a enfermaria. Lá fazem um curativo e eu ligo pro meu pai mandar alguém me buscar. – disse a jovem.

 

- Vai dar queixa? – disse o motorista, parecendo meio preocupado.

 

- Não, ele não levou nada. Graças ao senhor. Muitíssimo obrigado. Dê-me seu telefone, meu pai vai recompensá-lo. – falou ela, sem pensar.

 

O motorista demonstrou certa contrariedade:

 

 - Obrigado, mas não fiz pelo dinheiro. Alguém podia ter se machucado feio. Pensei nos meus filhos. – Disse, com um ar triste – Se você está mesmo bem, tenho que ir, os passageiros estão esperando.

 

Ela ficou desconcertada. Não falara por mal:

 

- Desculpe-me, não foi minha intenção ofender. Agradeço muito sua preocupação, mas pode ir tranqüilo. Mais uma vez, muito obrigado. Vá com Deus. – despediu-se com delicadeza e ainda meio sem graça.

 

Cada um seguiu o seu caminho. O motorista entrou no ônibus e Julia foi para a enfermaria da faculdade.

 

Os passageiros estavam agitados. O motorista, que se chamava José, prosseguiu viagem. Alguns quarteirões depois, ainda abalado com o acontecido, sentiu a visão ficar embaçada pelas lágrimas.

 

Quando percebeu o sinal fechado, era tarde. O barulho de vidro estilhaçando e o solavanco já antecipavam um novo contratempo.A pancada destruiu a traseira do luxuoso sedan. Dr. Arthur, desceu do carro, incrédulo.

 

- Você tá maluco, seu bosta? Tá cego? – Disse, descontrolado. Mas, ao ver o desespero de José, arrependeu-se. Não fazia parte da sua personalidade aquela agressividade. Talvez a reação fosse pelo fato de ter acabado de tirar o carro da concessionária. Pagara a vista e ainda não tinha contratado o seguro, o que, mesmo para um cirurgião plástico famoso como ele, significava um belo prejuízo. 

 

- Desculpe, senhor! A culpa foi toda minha! Vou ligar para a garagem, e o despachante virá para resolver.

 

- Tenho uma cirurgia marcada daqui a uma hora, não posso esperar. – disse o médico.

 

O cabo Leandro sai da cabine da PM do outro lado da rua, com uma prancheta na mão.

 

Dr. Arthur antecipou-se: - De minha parte, tudo resolvido. Preciso ir.

 

- Doutor, é melhor a gente fazer o B.O., depois o senhor vai. – aconselhou o motorista.

 

Depois de confirmar com o policial que seria rápido, Dr Arthur consentiu. Fez o boletim e quando deixava o local o despachante da empresa de ônibus chegou.  Trocaram telefones. O despachante comprometeu-se a entrar em contato o quanto antes para reparar o carro. Depois, dirigiu-se ao motorista:

 

 - José, o que houve? Em quase dez anos de empresa você nunca arranhou um carro, e bate desse jeito?

 

José contou o ocorrido, desde o assalto. O despachante, amigo de longa data, compreendeu tudo.

 

- Vá pra casa, e só me apareça na empresa depois de amanhã. Deixa comigo que eu seguro. – determinou. O motorista ensaiou um protesto, mas acabou acatando a ordem.

 

 Maria estava estendendo a roupa no quintal quando viu José subindo a escadaria do morro. Achou estranho ele chegar tão cedo e apressou-se em abrir a porta. O marido estava parado diante dela, com os olhos marejados. Abraçou-a em prantos. Em meio aos soluços, conseguiu balbuciar uma única frase:

 

- Vi nosso filho hoje, Maria...