Espaço Restrito

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sábado, 25 de outubro de 2008

Cenários Urbanos - Cena 2

O som da sirene abre caminho entre os curiosos. Abro os olhos, sinto o corpo dolorido. Meus ossos reclamam por dormir no banco dianteiro do carro. Olho o relógio: quase cinco da manhã. A Lapa ainda está uma ferveção. Naturalmente já é assim. Quando o sol se põe, as mais variadas tribos ganham às ruas, bares, casas de show e outros lugares mais, digamos, reservados. A fauna do local é sempre variada. As ocorrências também. Assaltos, agressões e, não raro, assassinatos.

Estou no carro desde as três. Do outro lado da rua, um homem, em um terno de linho bege, deitado de bruços na rua ao lado da Sala Cecília Meirelles, torna as coisas ainda mais agitadas. Saio do carro e dou uma esticada nas costas. Olho para os arcos. Não posso deixar de admirar o seu efeito naquela paisagem. É a sobriedade cruzando o caos. Atravesso a rua e abro caminho entre as pessoas, com meu distintivo na mão. Chego até o paramédico e pergunto o porquê da demora:


-A madrugada está movimentada. – foi a resposta.

 

Disso eu sabia. Ouvira no rádio alguns chamados, desde que eu mesmo fizera a chamada para o caso em questão. Mas não estava preocupado, o homem na calçada podia esperar. Não havia nada mais que pudesse ser feito por ele, além de um enterro decente.

 

Segundo testemunhas, ele havia saído do restaurante da esquina. O terno de linho bege e o chapéu Panamá denotavam alguém de posses. Aparentemente, bebera bastante. Trôpego, andou até em frente à Sala Cecília Meirelles e sentou na entrada, apagando por ali mesmo.

Fui até o restaurante. Era um ambiente muito escuro e enfumaçado. Procurei o barman, meu conhecido há muitos anos, homem de confiança. Não precisava me preocupar com a fidelidade do seu testemunho, mesmo porque, ao contrário do resto daquele mundo, era abstêmio. Disse-me que o homem chegara por volta das dez horas. Estava sozinho, e usava um chapéu Panamá, que cobria parte do seu rosto. Sentou-se no balcão e consumiu três doses de scotch e três de vodka com refrigerante. Pedi para ver a nota de serviço para comprovar. A esta altura eu tinha a companhia de um colega da delegacia do centro, que acompanhava atentamente os depoimentos, tomando nota de tudo. O barman continuou:

 

-O cara pagou em dinheiro. Aliás, tinha um maço de notas de cem no bolso.

 

E disse mais: Além de bem vestido e com dinheiro no bolso o homem tinha, no pulso, um relógio Rolex e uma pulseira de ouro. A camisa aberta deixava à mostra um espesso cordão, também de ouro. Como era de se esperar, nada disso foi encontrado com o corpo. A questão era saber se ele tinha sido saqueado antes ou depois de morrer, e a causa da morte. Podia ter sido assassinado, ou simplesmente ter passado mal. Eu precisava de mais informações, esgotar as possibilidades.

 

Despedi-me do barman e saímos do restaurante. Um homem moreno, alto e de cavanhaque veio em nossa direção. Contou que ele e outras pessoas que estavam em frente à banca de jornal viram quando um jovem aproximou-se da vítima. Tinha uma lata de refrigerante na mão e falava alto:

 

-Rapaz, eu já falei pra você não beber! Você não pode! Olha aí, agora fica desse jeito! Vou te fazer um favor, mas só desta vez: levarei o chapéu, os documentos e as jóias para sua esposa. Se ficar aí, com tudo isso, acabará sendo assaltado. Quando acordar, vai me agradecer.

 

O bêbado abriu os olhos e murmurou algo ininteligível, esticando a mão em direção à lata de refrigerante.

 

-Toma, pode ficar. - disse o “amigo”, entregando-lhe a lata.

 

O “amigo” levou embora os pertences do bêbado, inclusive o chapéu, passando em frente à banca de jornal. Sorriu para as pessoas e comentou:

 

-Ele sempre faz isso. Nunca muda.

 

Agradeci o depoimento. Entreguei-lhe um cartão, pedi para meu parceiro de ocasião tomar nota dos seus dados e fui até o local onde estava o corpo. Segundo o Paramédico, parecia que o homem tinha sido vítima de um enfarte fulminante, mas só o legista poderia confirmar.

 

Bem, era isso. Até então, segundo os fatos, tínhamos um cara que bebeu demais, apagou na calçada e foi roubado. Quando acordou, andou até a rua lateral e teve um ataque cardíaco, morrendo em seguida. Simples assim, um homem de pouca sorte.

 

Para mim estava ótimo. Quem quer complicação? Isso não é um filme. A resposta mais simples, geralmente, é a verdadeira.

 

Dois dias depois, recebo o relatório do legista e a minha tranqüilidade vai para o espaço. Segundo o laudo, o homem, ainda não identificado, havia sido envenenado. A substância encontrada causou o enfarte. Por sorte, minha posição privilegiada permitira que eu guardasse a lata de refrigerante como evidência. Mas fiquei realmente chateado. Estava tudo tão simples e agora eu tinha que encontrar um assassino. E o candidato perfeito era o dono das digitais na latinha. Mandei-a para o laboratório.

 

As digitais estavam no sistema. Era um punguista de quinta categoria, que agia há anos no centro do Rio. Desde a adolescência colecionava entradas em instituições correcionais. Mas não tinha nenhum assassinato. “Bom, sempre tinha uma primeira vez”, pensei.

 

Organizei uma campana. Pra quem não sabe, trata-se de ficar, horas a fio, vigiando um local até se apresentar a oportunidade de prendemos o suspeito. “A casa caiu”1 em uma quitinete em Copacabana. O delinqüente ainda tinha em seu poder as jóias da vítima, mas nem sinal dos documentos ou do dinheiro. Na delegacia, foi prontamente reconhecido pelas testemunhas. Agora, era só aguardar a identificação do corpo e fim de caso. Como não havia sido registrado nenhum desaparecido com suas característica, o corpo podia acabar sendo enterrado como indigente.

 

Já era mais de uma da manhã quando fui para casa, finalmente. Servi-me um uísque nacional e joguei-me no sofá. Estava quase dormindo, quando o celular tocou. Era uma das testemunhas. Lembrara de algo e queria me falar. Marquei no cais do porto, por segurança.

 

O local estava deserto, como era de se esperar. Encaminhei-me na direção dos faróis do carro parado à minha frente, com a mão na pistola, dentro do bolso da jaqueta. Reconheci o homem de cavanhaque.

 

-Algum problema, senhor?

 

Ele respondeu:

 

-Desculpe tirá-lo de casa a essa hora, inspetor. Mas acho que é importante.

 

-O que foi?

 

-Eu estava em casa, depois do reconhecimento do suspeito... E me ocorreu uma coisa.

 

-Você lembrou de algo que não havia me contado?

 

-Lembrei.

 

-Então diga, homem!

 

-Acho que não foi o suspeito que envenenou o homem.

 

-Como assim, por quê?

 

-Ele estava bebendo o refrigerante antes de dá-lo ao bêbado. Se estivesse envenenado, ele teria morrido também.

 

“Diabos!”, pensei. Ele está certo. Isso pode dar base para uma nova investigação.

 

-Alguém mais sabe disso?

 

-Não. Vim direto falar com o senhor, como pediu. Não queria correr nenhum risco.

 

-Ótimo. Você fez bem.

 

Dito isso, cumprimentei-o, pressionando quatro vezes o gatilho da pistola. Sorte ter lembrado de colocar o silenciador. Foi tudo muito rápido. O coitado nem soube o que o atingiu. Fui até ele e disparei mais uma vez, na cabeça, para conferir. Olhei em volta. Recolhi seus pertences, joguei seu celular na baía e voltei para o meu carro.

 

Tudo resolvido, o suspeito está preso. Infelizmente, uma das testemunhas foi vítima fatal em um assalto, mas existem outras com depoimentos mais “adequados” para o caso. Eu já ia esquecendo de mencionar o mais importante de tudo: um certo agente da corregedoria não vai mais poder falar nada para ninguém a respeito do meu pequeno comércio de substâncias ilegais. Meu sócio merece os parabéns, é realmente de confiança. Avisou-me prontamente, há cerca de uma semana, quando o homem de chapéu Panamá sentou-se no balcão pedindo drinques e informações a respeito de onde comprar “aditivo”.

 

Queria detalhes. Saber se era seguro, se havia algum policial dando cobertura e tal. Perdido em meus pensamentos, tirei do bolso a carteira, com o distintivo da Corregedoria. Péricles Ferdinand Ferreira, divorciado, 46 anos. Estava na polícia desde os 22.

 

Que idiota. Achar que podia sair por aí perguntando por tiras corruptos. Foi fácil segui-lo, imobilizá-lo e jogá-lo no porta-malas.

 

Levei-o para um galpão abandonado, na Zona Oeste, usado para “persuadir” alguns informantes. Embebedei-o, enquanto procurava saber o que ele sabia. Destruí suas anotações e, por fim, coloquei o veneno na última dose de vodka com refrigerante. Deixei-o só, por uns momentos. Um homem precisa de privacidade para morrer.

 

Pensei em sumir com o corpo, mas alguém podia encontrá-lo e as coisas ficariam mais complicadas. Então, já que desaparecer com o cadáver não era indicado, talvez o oposto funcionasse. Percebi que tínhamos o mesmo tipo físico. As únicas diferenças poderiam ser os fios de cabelo brancos - mas ele os disfarçava com tintura - e uns poucos centímetros a meu favor na altura. Deu trabalho achar uma roupa parecida com a dele e ficar duas horas fingindo-me de bêbado na calçada. Antes, havia ido ao restaurante, jogar conversa fora com o meu sócio.

 

Paguei pelas bebidas. Obviamente, não bebi aquilo tudo, apenas um pouco de vodka para ficar com o cheiro. Sem esquecer, é claro de derramar um pouco na camisa. Sabia que, com todas aquelas jóias, logo algum ladrãozinho da região ia aparecer. Mas, reconheço que o cara com o refrigerante foi um golpe de sorte. Como eu disse, minha “posição privilegiada” me permitiu guardar a lata.

 

 Estava escuro, e o imbecil nem percebeu que eu usava uma luva na mão direita. Só queria saber do relógio e do cordão. Procurou a carteira, mas essa eu tinha guardado. Depois, quando o local foi ficando vazio, cambaleei até a rua lateral, onde tinha deixado meu carro estacionado. Tirei o corpo do porta-malas, coloquei-o na calçada e fui embora. Dei a volta na quadra, troquei de roupa e voltei para a rua em frente. Encostei o carro, fiz a chamada para a central e dormi o sono dos justos, até que as sirenes me acordaram.

 

Quase tudo terminado. Só faltava dar um telefonema para um outro associado que estava “guardado” na casa de custódia para onde iam mandar o suspeito. Parece que o infeliz ia sofrer um acidente antes do julgamento. Pois é, coisas da vida. Gente sem sorte.

 

“A Casa Caiu”1: Gíria usada para dizer que a prisão foi feita. 

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